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Em debate na Unicamp, especialistas defendem que a bioenergia deve complementar – e não substituir – os fósseis, abrir novas cadeias industriais e gerar empregos assumindo o papel de motor da transição energética.

A transição energética não será feita contra o petróleo, mas em parceria com ele. Essa foi a tônica do painel “Bioenergia – Combustíveis do Futuro”, realizado na Unicamp, que reuniu Bruna Moraes, diretora do Centro Paulista de Estudos em Biogás e Bioprodutos (CP2B), Alexandre Breda, gerente de tecnologia de baixo carbono da Shell, e o geneticista Gonçalo Pereira, coordenador do Laboratório de Genômica e Expressão (LGE). O painel integrou a programação da Energy Week, realizada de 3 a 5/12 pelo CEPETRO.

Bruna Moraes abriu o encontro lembrando que a bioenergia é antiga, mas ganhou novo peso com as metas globais de neutralidade de carbono até 2050. “A nossa matriz mundial é baseada no fóssil, mas a ideia é que ela decaia e que os renováveis se ampliem se a gente quiser ter carbono zero”, afirmou.

Nesse cenário, o Brasil é protagonista. Nos últimos dez anos, o país registrou recordes na produção de etanol, biodiesel e, mais recentemente, biometano, cuja produção cresceu cerca de 20% entre 2024 e 2025. Mas Bruna afasta a falsa dicotomia entre bioenergia e óleo e gás: “A bioenergia não vai substituir todos os fósseis. A gente depende dos fósseis. O que a gente quer é complementar. A bioenergia é um vetor estratégico”.

O papel do CP2B — A partir desse diagnóstico, Bruna descreveu o papel do CP2B, centro que busca reduzir lacunas entre pesquisa, tecnologia, políticas públicas e sociedade, sempre com um pé na realidade local. Importar soluções prontas, afirma, não funciona num país que lida com vinhaça, entressafra, logística complexa e grandes assimetrias regionais.

Ela defende enxergar o biogás não apenas como energia, mas como porta de entrada para uma biorrefinaria de resíduos, capaz de gerar bioprodutos de alto valor agregado. “Se a gente ficar somente nos produtos padrão, é difícil competir com o preço do petróleo. Então a gente tem que otimizar essa rentabilidade”.

Um exemplo é o projeto com Comgás e Renova para criar um laboratório vivo na Unicamp, tratando restos de alimentos para produzir biometano e bioprodutos. Inspirado em experiências da Dinamarca e Suécia, o CP2B aposta em laboratórios vivos e ecoparques industriais capazes de integrar empresas fósseis e de biomassa. “O futuro é integrado. Bioenergia e o setor de óleo e gás podem e devem andar juntos”.

Perspectiva SAF — Se Bruna oferece a visão estrutural, Alexandre Breda coloca uma ambição: fazer do SAF (Sustainable Aviation Fuel) um novo projeto nacional comparável ao Proálcool. Não porque isso já esteja acontecendo, mas porque pode ser uma agenda estratégica. “A pergunta é se a gente consegue ter nosso novo ‘Projeto Manhattan’: daqui 50 anos, nossos filhos e netos falando com orgulho da indústria de SAF que o Brasil criou e liderou”, provocou.

O problema é que o SAF ainda é caro. Certos tipos custam até 13 vezes o querosene de aviação. Mesmo as rotas mais competitivas estão entre três e três vezes e meia o valor do combustível fóssil. Breda propõe metas: em dez anos, ter um SAF que custe “10% a 20% a mais do que o querosene” e com emissões muito abaixo das 80 gCO₂/MJ do combustível tradicional.

Para chegar lá, ele vê um campo fértil para inovação ao longo de toda a cadeia: bioestimulantes que aumentem produtividade, micro-organismos para fixação biológica de nitrogênio, novas técnicas de medição de carbono no solo, e tecnologias para reduzir contaminações em fermentações industriais, como o uso de fagos (vírus) em vez de antibióticos. “É uma quantidade grande de startups que cabem nessa cadeia gigantesca”, disse.

Breda destaca ainda um ativo esquecido: o CO₂ biogênico puro gerado na fermentação do etanol. “Para cada quilo de etanol que você produz, é um quilo de CO₂ que você emite, purinho. A natureza já fez a concentração para gente de graça”. Em um contexto no qual concentrar CO₂ é o principal custo do CCS, isso abre caminho para cadeias com pegada de carbono negativa.

Horizontes amplos – Se Bruna e Breda falaram em rotas tecnológicas e metas industriais, Gonçalo Pereira ampliou o horizonte, discutindo escala, território e impacto socioeconômico. Ele ressaltou que o planeta recebe uma quantidade colossal de energia solar, mas converte apenas uma fração em biomassa; e que os combustíveis fósseis são, em essência, essa energia solar acumulada ao longo de milhões de anos.

O desafio atual, afirmou, é produzir energia com inteligência, em tempo real, na superfície do planeta, e não recorrendo ao “acervo” fossilizado. Nesse contexto, o Brasil tem vantagens raras: vastas áreas de pastagens degradadas, clima favorável e espécies adaptadas ao semiárido, como o agave e a macaúba, capazes de produzir em condições extremas e recuperar solos empobrecidos.

Ele argumentou que rotas produtivas para regiões como o sertão representam agenda de bioenergia, mas também de ocupação do território, emprego e equidade.

Cultura e comportamento – Gonçalo também mencionou o potencial do biochar, carvão poroso capaz de aumentar produtividade agrícola e fixar carbono, com ganhos econômicos e ambientais. Ele exemplificou resultados em que o uso do biochar elevou a produtividade e gerou valor de mercado. Para ele, tecnologias desse tipo podem “criar cadeias industriais em regiões historicamente marginalizadas”.

O geneticista articulou também dimensões culturais e comportamentais, sugerindo que políticas públicas devem incorporar modelos de incentivo e recompensa. O objetivo seria transformar instintos humanos — competição, status, busca por ganho — em motores da transição. “A gente tem que usar os instintos pro bem. A gente não vai acabar com os instintos”.

Apesar dos estilos diferentes, as falas convergiram em um ponto: o Brasil tem biomassa, conhecimento acumulado com o etanol, empresas interessadas e uma janela histórica aberta pela transição energética. O que falta é propósito comum, metas de custo e emissões, e políticas que ativem novos mercados — do laboratório ao sertão.

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